A aprovação da tão esperada PEC da Relevância (PEC 10/2017), que institui filtros mais rigorosos para a tramitação de recursos no Superior Tribunal de Justiça, nunca esteve tão próxima. E isso não deve ser motivo de preocupação para a sociedade brasileira. O tribunal vai saber identificar os temas realmente sensíveis em todos os segmentos.
Quem avisa é o ministro
Humberto Martins, que, na função de presidente do STJ no biênio 2020-2022, manteve o engajamento institucional no processo de sensibilização do Congresso brasileiro diante da realidade vivida na corte: um tribunal que não consegue se dedicar adequadamente à sua função constitucional de uniformizar a interpretação do Direito federal. Ano a ano, está recebendo cada vez mais processos — em 2020, foram 354 mil distribuídos e, em 2021, 412 mil. O resultado é que, após dez anos, a PEC da Relevância está perto de sair. Segundo Martins, isso
deve ocorrer até junho. O texto cria requisitos para a tramitação de recursos no STJ. Foi
aprovado pelo Senado em novembro de 2021 e ainda precisa passar pela Câmara dos Deputados. Há algumas hipóteses de relevância presumida: ações penais, ações de improbidade administrativa, causas com valor superior a 500 salários mínimos, ações que possam gerar inelegibilidade e casos de possível contrariedade à jurisprudência do STJ. Prevê, ainda, que o legislador ordinário possa acrescentar novos temas a esse rol, por meio de lei. "O STJ saberá identificar os temas federais sensíveis em todos os segmentos da sociedade, inclusive e especialmente, os que dizem respeito aos mais vulneráveis", afirma Martins, em entrevista ao
Anuário da Justiça Brasil 2022, que será lançado ainda no primeiro semestre. "O instituto da relevância das questões de Direito federal não é uma barreira, mas um filtro para que o STJ se dedique a uniformizar o Direito federal. Por isso, a sua finalidade não é impedir o acesso das partes ao Superior Tribunal de Justiça, o objetivo da proposta é fazer com que a corte deixe de atuar como terceira instância, revisando decisões em processos cujo interesse é restrito às partes e passar a exercer, de forma mais efetiva, o seu papel constitucional, que é garantir o cumprimento de tratados e leis federais eventualmente afrontadas e que justificam a interposição de um recurso especial", justifica. Próximo de encerrar seu ciclo como presidente —
será sucedido pela ministra Maria Thereza de Assis Moura em agosto —, Humberto Martins avalia o período como positivo, a partir de uma gestão participativa e agregadora. Ele elogia o desempenho da corte durante a crise sanitária e destaca os avanços tecnológicos que permitiram uma alta produtividade.
Leia a seguir a entrevista: ConJur — Para os críticos, a PEC da Relevância pode fazer o STJ dar as costas aos mais vulneráveis e institucionalizar a jurisprudência defensiva na corte. O fato de a PEC prever que temas de relevância possam ser fixados também por lei é suficiente para evitar restrição de acesso ao STJ? Humberto Martins — O instituto da relevância das questões de Direito federal não é uma barreira, mas um filtro para que o STJ se dedique a uniformizar o Direito federal. Por isso, a sua finalidade não é impedir o acesso das partes ao Superior Tribunal de Justiça, o objetivo da proposta é fazer com que a corte deixe de atuar como terceira instância, revisando decisões em processos cujo interesse é restrito às partes e passar a exercer, de forma mais efetiva, o seu papel constitucional, que é garantir o cumprimento de tratados e leis federais eventualmente afrontadas e que justificam a interposição de um recurso especial. Cabe destacar que, na PEC aprovada pelo Senado e que se encontra na Câmara dos Deputados, o legislador estabeleceu situações de relevância presumida. Desse modo, o STJ saberá identificar os temas federais sensíveis em todos os segmentos da sociedade, inclusive e especialmente, os que dizem respeito aos mais vulneráveis. A aplicação do filtro da relevância provocará a redução do número de processos que ascenderão ao STJ, fazendo com que os julgamentos sejam mais céleres, na medida em que as decisões proferidas pelos Tribunais de Justiça e pelas cortes regionais serão
— em determinadas situações
— a palavra final na demanda.
ConJur — Em dez anos, o STF conseguiu reduzir em um terço o acervo de processos, resultado atribuído principalmente à criação de filtros de acesso à corte como a repercussão geral. No STJ, o acervo tem crescido, apesar da alta produtividade e das metas alcançadas junto ao CNJ. As teses firmadas em recursos repetitivos não têm dado conta da demanda? Por quê? Humberto Martins — A análise comparativa de resultados entre a repercussão geral e o recurso repetitivo deve considerar a distinção entre o procedimento e o objeto dos dois institutos. A premissa utilizada para aferir a eficiência dos tribunais baseada exclusivamente em dados numéricos absolutos (redução de acervo) pode não representar a realidade, pois as competências do STF e do STJ são distintas (matéria constitucional e infraconstitucional). Há de se considerar o fato de que o STF firma teses no sentido de que a questão controvertida não possui repercussão geral por ser de natureza infraconstitucional. Assim, esses processos, necessariamente, serão dirimidos pelo STJ. Outro ponto: o STJ, em regra, não afeta ao rito dos recursos repetitivos questões atinentes ao cabimento do recurso especial, cujo enfrentamento se dá por meio da aplicação dos enunciados de súmula, os quais, quando empregados no juízo de admissibilidade, não têm força vinculante para obstar a subida dos demais recursos sobre o mesmo tema. Portanto, as sistemáticas são bem distintas e não servem, na minha visão, para comparar a diminuição dos acervos processuais. O certo é que os resultados obtidos com a aplicação da sistemática dos recursos repetitivos são muito expressivos e positivos, o que atesta o sucesso do sistema de precedentes desenhado no CPC de 2015.
ConJur — Em 2021, STF e STJ firmaram acordo para cooperação nos temas que sejam alvo de recursos repetitivos e repercussão geral, com o intuito de evitar decisões díspares. Qual é a importância desse acordo? Há outras formas de cooperação com o STF que poderiam ser implementadas? Humberto Martins — Celebrar o pioneiro acordo de cooperação com o STF foi muito importante, pois consistirá na adoção de política de compartilhamento de dados e informações entre os dois órgãos. A medida permitirá o mapeamento quantitativo e qualitativo das questões jurídicas debatidas simultaneamente nas duas instâncias e, a partir desse trabalho de inteligência, a racionalização do julgamento de milhares de processos submetidos à apreciação dos dois tribunais. Esta parceria institucional possibilitará definição mais célere da competência para julgamento de questões repetitivas nas hipóteses em que se verifiquem seguidas interposições conjuntas de recursos extraordinários e recursos especiais nos mesmos autos. A nova metodologia concorrerá ainda para a redução da litigiosidade em todos os graus de jurisdição e para a formatação de novos precedentes qualificados do STJ e do STF, que nortearão a atuação dos demais órgãos do Poder Judiciário, resultando em mais segurança jurídica para os jurisdicionados e na possível dispensa de novas ações judiciais relacionadas aos temas já enfrentados pelos referidos tribunais. As administrações do STJ e do STF estão sempre interagindo e dialogando. Certamente outras formas de cooperação poderão ser implementas entre os dois tribunais. É nossa responsabilidade contribuir para a melhoria do sistema judiciário do nosso país.
ConJur — Segundo o procurador-geral da República, Augusto Aras, há mais de 400 autoridades sob investigação no Superior Tribunal de Justiça e também no STF. Qual o impacto, no STJ, dos casos em que há foro por prerrogativa de função? Humberto Martins — As ações penais originárias, por sua natureza e importância, estão entre as ações prioritárias do Tribunal da Cidadania. Em termos de volume, não possuem impacto significativo.
ConJur — O procurador-geral da República destaca que essas investigações estão sendo tratadas com sigilo, sem vazamentos das acusações, sem prisões desnecessárias, sem espetáculo. Alguns exemplos são vistos na Corte Especial do STJ, em casos envolvendo governadores e magistrados. O Ministério Público tem de rever sua forma de atuação? Humberto Martins — Na forma do artigo 127 da Constituição Federal, o Ministério Público é instituição permanente e essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. A Procuradoria da República vem exercendo a sua missão constitucional com muito brilhantismo e eficiência, tratando a todos com muita sensatez, serenidade e efetividade, no seu compromisso com fortalecimento do Estado de Direito e pelo pleno exercício da cidadania.
ConJur — Em muitos momentos, o Judiciário acaba fazendo o papel do Legislativo e do Executivo, quando define políticas públicas, por exemplo. Diante da omissão dos outros poderes, o Judiciário tem de agir e ocupar essas lacunas? Humberto Martins — Nossa Constituição Federal prevê a separação dos poderes em Legislativo, Executivo e Judiciário, que são independentes e harmônicos entre si. Todavia, a Carta Cidadã também consagra o princípio da inafastabilidade da jurisdição, segundo o qual não se pode excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão ou ameaça ao Direito. Nesse contexto, eventuais decisões judiciais que desbordem da função judicial precípua de "aplicador" das leis, é necessária para dar soluções jurídica aos casos concretos que não se encontram claramente disciplinados nas leis que fazem parte do ordenamento jurídico.
ConJur — Em outubro encerra-se o biênio como presidente. Como avalia a administração do STJ? Humberto Martins — A avaliação é positiva. A gestão foi participativa e agregadora. O diálogo foi constante. Ministros, servidores e colaboradores sempre opinaram na construção dos destinos da corte. Também garantimos voz àqueles que se relacionam com o tribunal: poderes da República, a Ordem dos Advogados do Brasil, o Ministério Público, os órgãos de representação de classes e o cidadão brasileiro. Foram implementadas ferramentas baseadas em inteligência artificial para auxiliar na administração de processos e garantir a aplicação da lei geral de proteção de dados. Diversos espaços físicos foram adequados ou mais bem aproveitados, sempre visando à prestação de serviço mais efetiva, célere e transparente. Foi criado o projeto Fale com o Presidente, que permite que qualquer cidadão seja atendido pessoalmente pelo presidente do STJ, a fim de trazer reclamações, sugestões, elogios e, enfim, colaborar com ideias para que tenhamos um Poder Judiciário cada vez mais acreditado pela população. A pandemia nos exigiu adaptações de rotinas, mas, mesmo com a ampla reestruturação que nos foi exigida, o Superior Tribunal de Justiça, durante a nossa gestão, julgou aproximadamente um milhão de processos, cumprindo a Meta 1 do CNJ, circunstância que tem reflexo direto na vida do cidadão brasileiro, que é verdadeira razão de existir do Tribunal da Cidadania.
ConJur — Os avanços e mudanças experimentados durante a crise sanitária terão impacto duradouro no tribunal? Humberto Martins — O tribunal hoje está plenamente adequado para o teletrabalho de servidores e para a realização de sessões de julgamento por videoconferência ou híbridas, com parte dos ministros, advogados e membros do Ministério Público podendo participar presencialmente ou por videoconferência. Para os servidores, foram criadas e instaladas salas de reunião e de trabalho coletivas, denominadas Salas Multiuso Conecta STJ, inspiradas no modelo de
coworking, especialmente para os servidores que estão em teletrabalho e precisam vir ao tribunal e não necessitam de estações de trabalho permanentes. Essas alterações foram possíveis com investimentos maciços em tecnologia da informação, possibilitando ao STJ estar permanentemente conectado, facilitando o acesso de partes e advogados ao Tribunal da Cidadania. Foram adotadas medidas sanitárias e emergenciais para resguardar a vida dos que transitam por esta casa. A atividade jurisdicional foi mantida por meio de sessões virtuais e por videoconferência, o que tornou possível a redução do acervo dos processos do STJ. O nosso empenho contou com o reforço de mão de obra qualificada. Durante a gestão, nomeamos mais de cem novos servidores para as diversas áreas do tribunal, mantendo, inclusive, os investimentos em capacitação e aperfeiçoamento da nossa força de trabalho. Em sintonia com a Agenda 2030 e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), o Superior Tribunal de Justiça também buscou modernizar a gestão, tornando-a menos burocrática e cada vez mais participativa e transparente para o jurisdicionado.
ConJur — Quais as estratégias de gestão de processos e gerenciamento de precedentes a corte tem usado? Humberto Martins — A gestão de processos e o gerenciamento de precedentes são eixos da minha administração na Presidência do STJ e de fundamental importância para a estabilização das relações sociais e econômicas. Nos últimos anos, é possível constatar uma sensível melhoria da gestão dos recursos repetitivos no âmbito do STJ, inclusive com a possibilidade do emprego da inteligência artificial para a identificação de casos concretos que concentram grande volume de processos, cuja discussão de fundo é a mesma tese jurídica, para que sejam elaborados pela corte os respectivos precedentes qualificados. A efetiva observância dos precedentes judiciais auxiliará não somente o STJ, enquanto unificador da jurisprudência infraconstitucional, mas trará segurança e produtividade aos juízos de primeiro e segundo graus, que terão um norte para seguir quando se depararem com teses jurídicas firmadas nas instâncias superiores. Os grandes litigantes perante o STJ, em especial os órgãos de defesa jurídica dos estados e da União, como a Advocacia-Geral da União e as Procuradorias dos Estados, estão firmando acordos de cooperação técnica para receberem informações consolidadas sobre os processos em que atuam, a fim de pedir desistência dos recursos que não têm possibilidade de êxito à luz da jurisprudência desta corte, o que proporciona uma redução dos processos tramitando, além de abreviar a duração do trâmite do processo, o que é bom para o Poder Judiciário e para as partes litigantes.
ConJur — A inteligência artificial é usada em quais situações pela corte e pelos gabinetes? Quais as atividades que essa tecnologia ainda pode ajudar a desenvolver? Humberto Martins — A inteligência artificial é um dos eixos estratégicos da nossa administração à frente do Superior Tribunal de Justiça. As soluções de IA apresentam informações que irão subsidiar ações envolvidas na prestação jurisdicional. O Athos é a principal solução de inteligência artificial desenvolvida pelo STJ. Tem como finalidade identificar documentos que, apesar de escritos de forma diferente, tratam do mesmo assunto. É utilizado, principalmente, para realizar a triagem de matérias repetitivas, bem como para monitoramento e agrupamento de feitos, visando à identificação de temas com potencial aplicação da sistemática dos recursos repetitivos. Como se vê, no STJ, são inúmeras as atividades em que essa tecnologia tem sido aplicada. Sobre o futuro, é possível afirmar que o avanço da aplicação da tecnologia baseada em IA possibilitará o aprimoramento da uniformização da interpretação da legislação federal, de modo a que o STJ ofereça uma justiça ágil e cidadã. Temos empreendido esforços e investimentos necessários para efetiva implementação da inteligência artificial no tribunal. Desse modo, conscientes da necessidade de fortalecimento das ações conjuntas, foram firmados acordos de cooperação técnica com diversos tribunais, inclusive com o STF, visando, especialmente, à melhoria na gestão dos precedentes.
ConJur — Como estão a estruturação e viabilização de instalação do Tribunal Regional Federal da 6ª Região? Humberto Martins — A estruturação e viabilização estão em curso. Fato decorrente da própria Lei 14.226/2021, que o criou. Destaco que o tribunal será composto por 18 desembargadores federais oriundos da transformação de 20 cargos vagos de juiz federal substituto do quadro permanente da Justiça Federal da 1ª Região. Em dezembro de 2021, o Conselho da Justiça Federal aprovou a Resolução 742, dando início às medidas administrativas necessárias à instalação e ao funcionamento do TRF-6, tais como: a reestruturação das unidades da Seção Judiciária de Minas Gerais localizadas em Belo Horizonte; a definição dos quantitativos de cargos destinados à 6ª Região; e a fixação das unidades que integrarão o tribunal e a Seção Judiciária de Minas Gerais. Cabe registrar que o TRF da 6ª Região disporá da mesma estrutura física que já é utilizada pela Seção Judiciária de Minas Gerais, estando em curso as providências relativas aos ajustes das instalações para que possam comportar as unidades que foram previstas pela Resolução CJF 742/2021. Também estão em curso
— no âmbito do Superior Tribunal de Justiça
— as providências necessárias ao preenchimento dos cargos de desembargador federal do TRF-6, na forma dos parágrafos 1º a 6º do artigo 5º da Lei 14.226/2021. A previsão é que a instalação do tribunal ocorra no início de agosto do corrente ano.