O Supremo Tribunal Federal
considerou válida, na quarta-feira (23/3), a alteração promovida na Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) para permitir que, em casos excepcionais, delegados ou policiais afastem — mesmo sem autorização judicial prévia — o suposto agressor do domicílio ou do lugar de convivência quando for verificado risco à vida ou à integridade da mulher. Advogados se dividem sobre a decisão. Enquanto parte elogia o entendimento da Corte, outra aponta desproporcionalidade e ameaça a princípios constitucionais.
Cecilia Mello, sócia do Cecilia Mello Advogados e desembargadora aposentada do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (SP e MS), afirma que o “STF foi preciso ao reconhecer a constitucionalidade da alteração da lei”. “É evidente a natureza cautelar da medida que, se não efetivada de imediato, pode deixar de ser eficaz. Pior, a sua não eficácia guarda relação direta com a não preservação da vida da própria vítima”, diz. Cecilia também não vê violação do princípio constitucional da reserva de jurisdição. “Eis que em até 24 horas deverá haver comunicação ao juízo competente que, por sua vez, decidirá pela manutenção ou não da medida cautelar. A partir de agora acredito que deverá haver maior atenção e preparo das autoridades policiais diante de situações como essas. Isso porque, se por um lado se reconhece a constitucionalidade dessa competência policial, por outro também deverá haver — e é importante que haja — uma cobrança maior da sociedade quanto ao efetivo e correto exercício dessa competência cautelar”, afirma. Segundo a advogada, considerados os bens jurídicos envolvidos, “o maior relevo é o da preservação da vida e integridade da vítima e seus dependentes”. “Quando há um aparente conflito de direitos, deve haver uma ponderação entre eles, prevalecendo o de maior valor. Aqui me parece que o foco é outro: há necessidade de que os efeitos práticos se verifiquem nesses contextos de violência. E as autoridades policiais devem ser preparadas para isso, a exemplo de tudo quanto vem sendo implementado nas Delegacias das Mulheres”, declara a desembargadora aposentada. Na mesma linha,
Daniel Bialski, criminalista e sócio do Bialski Advogados, entende que o Supremo “supriu a falha do legislador”. “Os ministros permitiram que as medidas protetivas tenham efetividade imediata, como deve ser, dando validade aos atos do delegado de polícia, protegendo de forma cautelar as vítimas de eventuais crimes abrangidos pela Lei Maria da Penha. Isto é um avanço que deveria ser estendido a outras leis também porque, infelizmente, em algumas oportunidades quando a Justiça chega a se pronunciar, algo pior pode já ter acontecido”, opina.
Ameaça a princípios Por outro lado,
a criminalista
Mayra Mallofre Ribeiro Carrillo, sócia do Damiani Sociedade de Advogados, avalia que a decisão do STF coloca em xeque os princípios constitucionais da reserva de jurisdição, do devido processo legal, da proporcionalidade e da inviolabilidade do domicílio. “Isso porque permite a mitigação de direitos fundamentais sem análise prévia do Poder Judiciário, na medida em que admite que os agentes de polícia, sem autorização judicial e sem que haja flagrante delito, ainda que por tempo exíguo, ingressem no domicílio do suposto agressor retirando-o do ambiente, lastreado por decisão proferida por autoridade administrativa. Ora, no Estado Democrático de Direito quem mitiga direito fundamental, mediante decisão fundamentada, é o Judiciário e não a autoridade policial”, sustenta. Colega de Carrillo no Damiani Sociedade de Advogados, a advogada especialista em Direito Penal Econômico
Lucie Antabi complementa que “a diferença entre o remédio e o veneno é a dose”. “E, ainda que a decisão da Suprema Corte esteja calcada na celeridade à proteção da mulher em situações de violência doméstica, a ingerência da esfera policial nos direitos fundamentais do investigado, ainda mais tratando-se de medidas de cunho cautelar, revela-se desproporcional e gravosa”, defende.
Sofia Coelho Araújo, sócia e coordenadora do Núcleo de Violência de Gênero do escritório Daniel Gerber Advogados, é favorável à medida apenas em casos excepcionais. “O poder geral de cautela que existe para qualquer funcionário público permite que o delegado, diante de uma situação de flagrância, intervenha de acordo com o Código de Processo Penal. Todavia, não sendo uma situação de tal dimensão, não vejo sentido que o Poder Judiciário seja alijado dessa escolha de deferimento ou não da medida de emergência", afirma.