Brasileiro terá relações mais reais pós-pandemia, diz Contardo Calligaris

06/07/2020 06/07/2020 08:28 110 visualizações
Pessoas tinham pretenso afeto; Criticou conceito de felicidade; Entrevista ao Poder em Foco O psicanalista, escritor e dramaturgo Contardo Calligaris, de 72 anos, diz acreditar que o contato físico entre as pessoas continuará menor no período pós-pandemia. Ele afirma, no entanto, que as relações entre os brasileiros poderão ficar mais “limpas e verdadeiras”. De acordo com Calligaris, “o pretenso suposto afeto infiltra as relações”. “Acho que os amigos do peito, [aqueles] que eu realmente amo, para dizer a verdade, vou continuar abraçando absolutamente da mesma forma. As pessoas que não vou abraçar são as que eu conheço, mas com quem não tenho por que dar, como dizem os americanos: public display of affection. Dar uma pública exibição de afeto. Até porque, em última instância, eu acho que esse caráter afetivo é, em grande parte, hipócrita”, diz. Por outro lado, Calligaris afirma que as “relações inúteis fazem falta”. Estes são os relacionamentos, segundo ele, em que a pessoa “troca duas besteiras absolutamente irrelevantes com o porteiro ou com uma pessoa que você cruza no elevador”. “Acho que, no fim do dia, a soma das relações, da troca de palavras que não significa nada, só significa ‘oi, estou aqui’, e o outro responde ‘oi, eu também estou aqui’ –isso talvez faça falta, mas isso vai voltar. Também será mais do lado das palavras trocadas do que dos toques ou dos falsos gestos de grande afeto”, afirma. O psicanalista falou ao jornalista Fernando Rodrigues, apresentador do Poder em Foco, uma parceria editorial entre o Poder360 e o SBT. Assista à íntegra da entrevista, gravada em 12 de junho de 2020 (45min38seg)

CORDIALIDADE FALSA

Contardo declara que é falsa a ideia de que brasileiros são “sujeitos cordiais” –como sinônimo de “gentis”. A referência à cordialidade remete à formulação do historiador Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), em seu livro Raízes do Brasil (26ª ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1994. p. 106-7), editado pela 1ª vez em 1936. “A contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade. Daremos ao mundo o ‘homem cordial’. A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, 1 traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal”, elaborou Buarque de Holanda, ao também advertir: “Seria engano supor que essas virtudes possam significar ‘boas maneiras’, civilidade” (p. 107). Segundo o autor de Raízes do Brasil, “a palavra ‘cordial’ há de ser tomada, neste caso, em seu sentido exato e estritamente etimológico” (p.106). Buarque de Holanda afirma que o brasileiro está distante de ter uma noção ritualista da vida, sendo cordial e colocando sempre o privado acima do coletivo. “Nossa forma ordinária de convívio social é, no fundo, justamente o contrário da polidez. Ela pode iludir na aparência –e isso se explica pelo fato de a atitude polida consistir precisamente em uma espécie de mímica deliberada de manifestações que são espontâneas no ‘homem cordial’: é a forma natural e viva que se converteu em fórmula. Além disso, a polidez é, de algum modo, organização de defesa ante a sociedade. Detém-se na parte exterior, epidérmica do indivíduo, podendo mesmo servir, quando necessário, de peça de resistência” (p. 107). Para Buarque de Holanda, essa cordialidade “equivale a 1 disfarce que permitirá a cada qual preservar intactas suas sensibilidades e suas emoções”.
 

FALTA IDEIA DE “BEM COMUM”

Nascido em Milão, na Itália, Contardo compara a forma como italianos e brasileiros lidam com a pandemia da covid-19. Ele diz que o líder fascista Benito Mussolini certa vez escreveu com humor: “Perguntam-me frequentemente se é difícil governar os italianos. Eu sempre respondo que não é difícil. É muito fácil. O problema é que é totalmente sem efeito.” A partir disso, Calligaris afirma: “Imaginava que os italianos, no confinamento e no pós-confinamento, seguissem de acordo com essa sabedoria fascista. Ou seja, que obedecessem muito pouco [ao isolamento social] –e não foi o caso; eles aderiram”. O psicanalista afirma que o caso brasileiro é diferente. Primeiro porque há orientações divergentes entre os governos federal, estaduais e municipais. “As pessoas ficaram perdidas”, diz. Além disso, faltaria a ideia de “bem comum”. Essa noção, segundo Contardo, já existe na Itália. Por isso, o cidadão percebe que a coletividade, numa série de circunstâncias, “pode ser mais importante do que a sua vantagem pessoal imediata.” 
Contardo diz que a ausência do conceito de bem comum no Brasil é exemplificada na pessoa “que estaciona no lugar de gestante e idoso sem nenhum problema” por ser mais próximo do elevador. Outro caso é a decisão de usar ou não uma máscara: “É engraçado, porque quando você pergunta a alguém: ‘Mas por que você não está usando máscara?’, ele te responde [que é] porque ‘não está com medo disso aí’. O problema é que a gente usa a máscara para não contaminar os outros, não é para não se contaminar. Uma parte grande do uso da máscara é para evitar contaminar os outros. Existe uma coisa que se chama comunidade. E a gente tem que cuidá-la todos os dias.”

MEDO DA MORTE E SOLIDÃO

O psicanalista afirma que é “uma coisa ótima” ter consciência de que a morte vai ocorrer. Ele acrescenta, no entanto, que o coronavírus provoca uma sensação diferente: “A morte, no caso da covid, é especialmente apavorante, porque não é só a morte, é 1 tipo de solidão na morte à qual nós não estamos acostumados”. “Claro, para quem morre não faz muita diferença ter velório ou não ter velório. É mais para os outros. Mesmo assim, para o cara que pensa na sua morte, a ideia que seja uma morte solitária, dentro de 1 hospital, onde os familiares não podem entrar, sem passar por 1 velório, de caixão fechado, sem ninguém no enterro, é uma morte especialmente solitária”, diz.

CONSUMO DE DROGAS E ATENDIMENTO POR VÍDEOS

Contardo diz que é preocupante o retorno de alcoólatras abstêmios a consumir álcool. Outra preocupação são “pessoas que passaram a, por exemplo, fumar maconha além da conta, além do que eles ou elas podiam aguentar”. Isso porque, diz ele, “o consumo excessivo de maconha pode produzir –além de 1 episódio depressivo– uma posição perseguida. [A pessoa pode] se sentir perseguida pelo mundo.”
Por outro lado, Calligaris afirma que há menos gente sofrendo de ansiedade do que ele imaginava: “Tem uma coisa… Uma antiga observação de Freud que, durante a 1ª Guerra Mundial, ele observava como, realmente, a quantidade de pacientes que consultava diminuía –ou pelo menos como as patologias pareciam diminuir. Ele observava com toda razão: Quando existe 1 inimigo concreto e exterior muito presente, talvez os nossos conflitos internos se acalmem 1 pouco.” O psicanalista diz que o momento fez crescer as consultas por videoconferência –algo que ele já praticava em casos como viagens ao exterior. Há pessoas, porém, que decidem não prosseguir com os atendimentos, porque acham que a confidencialidade fica comprometida –não por falta de confiança nele, mas pelo meio digital.

FELICIDADE: CONCEITO “BABACA”

Calligaris declara que não tem qualquer simpatia pelo conceito de felicidade. “Não me interessa, eu não quero ser feliz. Eu quero ter uma vida interessante. Posso, eventualmente, preferir ser alegre do que triste, como diz 1 samba famoso, mas a alegria é uma coisa, a felicidade para mim é, fundamentalmente, uma coisa 1 pouco babaca. ‘Ah, eu quero ser feliz…’”

NEGACIONISMO: “SEMPRE O 1º PASSO”

O psicanalista diz que o negacionismo, inclusive da pandemia, é o 1º passo em “qualquer tipo de luta”. Dizer “não”, de acordo com ele, costuma ser a reação imediata a 1 diagnóstico de câncer. “É 1 erro, o laudo saiu errado, vai que trocaram, deve ser de outra pessoa”, afirma. “Isso acabou sendo meio que engraçado diante do fenômeno propriamente pandêmico, porque aí era o mundo inteiro. Então, imaginar que aquilo fosse uma espécie de invenção ou até mesmo uma estratégia político-comercial de alguns países contra outros, ficou fazendo cada vez menos sentido”, diz.

QUEM É CONTARDO CALLIGARIS

Contardo Luigi Calligaris, de 72 anos, é psicanalista, escritor e dramaturgo. Nasceu em Milão, na Itália. Morou na Inglaterra, na Suécia, nos Estados Unidos e na França. Vive no Brasil desde o fim dos anos 1980. É doutor em psicologia clínica pela Universidade de Provença e colunista da Folha de S.Paulo há 20 anos.

PODER EM FOCO

O programa semanal, exibido aos domingos, sempre no fim da noite, é uma parceria editorial entre SBT e Poder360. O quadro reestreou em 6 de outubro, em novo cenário, produzido e exibido diretamente dos estúdios do SBT em Brasília. Além da transmissão nacional em TV aberta, a atração pode ser vista nas plataformas digitais do SBT Online e no canal do YouTube do Poder360. Eis os outros entrevistados pelo programa até agora, por ordem cronológica: