De janeiro a outubro de 2019, a primeira instância da Justiça do Trabalho recebeu 1,5 milhão de processos, segundo dados divulgados pelo TST. Embora o número cause espanto, representou um respiro aos magistrados. É que antes da
reforma de 2017, que alterou profundamente a CLT, as varas do trabalho estavam acostumadas com uma média muito maior, de 3 milhões de novos processos por ano. Agora, a crise financeira desencadeada pelo novo coronavírus parece capaz de alterar novamente o horizonte, introduzindo uma série de novos conflitos entre empregados e empregadores. Caso eles desemboquem no Judiciário — cenário que, ao que tudo indica, se avizinha —, os litígios podem entupir mais uma vez os tribunais. Segundo dados do
Termômetro Covid-19 na Justiça do Trabalho, criado pela
ConJur em parceria com a Fintedlab e com a Datalawyer Insights, quase 66 mil processos trabalhistas citam as palavras "coronavírus", "Covid-19" e variáveis. O valor total das causas já ultrapassou os R$ 4 bilhões. Em entrevista à
ConJur por telefone, o juiz
Otavio Amaral Calvet, da 11ª Vara do Trabalho do Rio de Janeiro, afirmou que o número de processos na unidade em que atua não aumentou em relação ao ano passado. Para ele, no entanto, isso não significa que a Justiça do Trabalho não terá que lidar com uma explosão de processos. "O que vejo, por óbvio, é que aumentaram os litígios relacionados à Covid-19. Mas não é isso que preocupa. Nossa perspectiva é a de que haverá um acréscimo significativo no número de ações, de um modo geral, depois da pandemia. Quem está buscando o Judiciário agora tem questões emergenciais para tratar. O problema está nas questões que agora podem esperar", afirma. De acordo com o magistrado, além da possibilidade do número de litígios envolvendo o coronavírus crescer muito depois da epidemia, os juízes do trabalho ainda terão que lidar com a grande quantidade de processos paralisados por causa do isolamento, ações questionando as medidas provisórias emergenciais editadas pelo governo federal e disputas sobre extinções de contratos. Ele considera, no entanto, que a crise causada pela Covid-19 aproximou empregados e empregadores sob um mesmo interesse: a manutenção dos postos de trabalho. Isso fez com que o volume de conflitos trabalhistas tradicionais diminuísse, diz. Além de juiz do trabalho, Otávio Calvet é presidente da Associação Brasileira de Magistrados do Trabalho (ABMT), entidade de classe criada em agosto de 2019 com o objetivo de construir um espaço para aquela parte da magistratura que não "concorda com a forma de atuação até então adotada" por outros movimentos associativos. Entretanto, ele ressaltou na conversa com a
ConJur que respondeu às perguntas apenas na condição de juiz, não de presidente da ABMT.
Leia abaixo a entrevista: ConJur — O governo federal editou algumas medidas provisórias para tentar mitigar a crise financeira que veio com a Covid-19. Entre elas, está a MP 936/20, que prevê a redução de jornadas e a suspensão dos contratos de trabalho. Esta se tornou lei e teve seus efeitos prorrogados. Trata-se de uma boa iniciativa? Otavio Calvet — Em que pese as controvérsias sobre o tema, é uma medida importante e necessária para o enfrentamento da calamidade pública que vivemos. Ela cria saídas ou pelo menos ameniza os efeitos da pandemia nas empresas que foram afetadas pelo isolamento social e pela queda da demanda. É uma iniciativa dentro do que se esperava, feita para atender a necessidade dos empregados e dos empregadores. No final das contas, o que se quer é que ambas as partes consigam passar por esse momento e que sobrevivam de forma digna. O trabalhador mantendo a sua renda, a empresa mantendo a sua existência. Sabemos que é difícil conseguir isso em larga medida, mas as políticas do governo federal foram interessantes e razoáveis.
ConJur — Outra iniciativa com objetivo semelhante, a MP 927, que previa a suspensão de acordos trabalhistas, antecipação de férias, entre outras coisas, não foi votada pelo Senado e acabou caducando. Como fica o poder de decisão do magistrado frente a mudanças tão rápidas? Calvet — Creio que nesse caso não irá gerar muita insegurança jurídica, já que a regra é muito clara: enquanto a MP estava em vigor, vai valer tudo aquilo que ela previa. Assim que perdeu a vigência, o empregador não mais poderá utilizar aquelas medidas que o governo excepcionalmente havia autorizado. O que eu acho problemático, no entanto, é a situação de teletrabalho que a MP 927 havia autorizado de forma ampla. Isso agora caducou e representa um retrocesso no que diz respeito à retomada das empresas com a prevenção necessária para o empregado não se contaminar com a Covid-19. O teletrabalho ajudou muitas empresas a reduzir a quantidade de pessoas no ambiente de trabalho, de forma a se manter ali um sistema de rodízio e de afastamento dos empregados. Isso é preocupante porque agora o empregador vai se ver em uma situação em que coloca todo mundo para trabalhar presencialmente ou pode acabar tendo que reduzir os postos, o que não é interessante para ninguém. O interesse é a manutenção dos empregos.
ConJur — O presidente do Senado, Davi Alcolumbre, disse que a Casa não votou a MP porque ela reduzia muito o poder de negociação do empregado diante do empregador. Isso de fato acontecia? Calvet — Sim. Tradicionalmente, essa é a história do Direito do Trabalho. Não se pode querer igualar o poder de negociação das partes. Isso seria negar o próprio Direito do Trabalho, que existe justamente para regular essa disparidade de forças. Só que este momento excepcional de enfrentamento à calamidade, ao que me parece, aproximou os interesses dos empregados e empregadores. As flexibilizações do teletrabalho, por exemplo, são bem-vindas para todas as partes. No período de calamidade pública, os interesses dos trabalhadores e empregadores, no que diz respeito à manutenção do empregado e da renda, não são necessariamente antagônicos. Eu não estou vendo o conflito coletivo de trabalho tradicional, que fez parte da nossa história.
ConJur — Alguns advogados trabalhistas expressaram preocupação com a falta de clareza das MPs e disseram que isso está fazendo com que cada empresa aplique previsões de formas diferentes, o que impacta no número de questionamentos e de processos. As MPs editadas até aqui são de fato pouco claras e isso está gerando demandas judiciais muito díspares? Calvet — Concordo com a afirmação dos advogados. Foram editadas muitas medidas que não têm precedentes históricos, o que gera muita dúvida. É difícil para quem produz uma nova norma prever todas as suas consequências. Então não há dúvida de que as medidas geram muitos questionamentos na Justiça do Trabalho. Entretanto, ninguém estava preparado para o que estamos vivendo. Sendo assim, cabe uma legislação emergencial para amenizar ao máximo possível o impacto da calamidade. Entre mortos e feridos, entre o que poderia ter sido feito e o que foi feito, existir medidas provisória é melhor do que o governo federal simplesmente se omitir. Concordo com a crítica, mas também tenho que compreender a dificuldade gerada pela falta de completos precedentes e pela rapidez com que tudo foi produzido.
ConJur — De acordo com dados do Termômetro Covid-19 na Justiça do Trabalho, quase 66 mil processos trabalhistas mencionam a Covid-19, e o valor total das causas já ultrapassou os R$ 4,15 bilhões. O senhor, enquanto juiz do trabalho, consegue sentir um aumento no número de litígios por causa do novo coronavírus? Calvet — Na minha unidade jurisdicional, que é a 11ª Vara do Trabalho do Rio de Janeiro, a quantidade de ações, em termos gerais, não ultrapassou a do ano passado. O que vejo, por óbvio, é que aumentaram os litígios relacionados à Covid-19. Mas não é isso que preocupa. O preocupante é que quando tudo voltar a funcionar normalmente, aí sim as pessoas afetadas pela calamidade vão buscar os advogados trabalhistas e judicializar conflitos. Nossa perspectiva é a de que haverá um acréscimo significativo no número de ações, de um modo geral, depois da pandemia. Quem está buscando o Judiciário agora tem questões emergenciais para tratar. O problema está nas questões que agora podem esperar.
ConJur — As varas do trabalho podem entrar em colapso caso esse cenário se concretize e haja um aumento tão grande na demanda? Calvet — Colapsar no sentido da Justiça do Trabalho não conseguir funcionar, creio que não. A Justiça do Trabalho já está acostumada a um grande número de litígios. Antes da reforma trabalhista, por exemplo, a quantidade de ações por ano beirava 5 milhões. Houve uma queda depois da reforma, ficando em torno de 3 milhões. Então podemos dizer que já atuamos com uma demanda maior do que aquela que tínhamos anos atrás. Não acredito que haverá o colapso da Justiça do Trabalho, mas vai dificultar bastante, sobre isso não há dúvida. Até porque como estamos com dificuldade de fazer audiências, há muito serviço represado. As audiências são telepresenciais, mas é consenso que é muito difícil conseguirmos fazer um número de audiências nesta modalidade correspondente ao que havia quando podíamos fazer audiências presenciais. Além dos processos represados, imaginamos que quando tudo voltar a funcionar normalmente não será possível lidar com a mesma quantidade de processos que a gente conseguia dar conta anteriormente, porque será necessário evitar aglomerações. Mas mesmo com o estouro de ações que está por vir e com todo o serviço represado, não vamos chegar a colapsar.
ConJur — Algo visível é que quase todas as decisões proferidas nos últimos meses em primeira e segunda instância são liminares. As decisões de mérito são raras. As colegiadas, então, até surpreendem. Com isso, é mesmo possível sentir que há o represamento de processos menos urgentes. Como a Justiça do Trabalho pretende reorganizar as ações que estão paradas? Calvet — Na Justiça do Trabalho, a maior parte das ações envolve matéria fática, exigindo que se faça audiência de instrução, oitiva de testemunhas e partes, diligências etc. Isso é muito difícil de se fazer telepresencialmente na quantidade que a gente estava acostumado. Nesse cenário, se uma das partes não concorda com a audiência, já fica muito difícil de proceder com o ato jurisdicional. A parte inicial a gente consegue fazer mais facilmente, que é a liminar, a tutela provisória, as audiências de conciliação. Isso explica esse disparate entre os quantitativos dos atos jurisdicionais. Quanto à organização do trabalho, ainda não se sabe ao certo. Mas três coisas vão atrapalhar bastante: as ações represadas; as questões específicas do período de calamidade pública, como os questionamentos às MPs emergenciais; e, por último, a quantidade de extinções de contratos de trabalho que já ocorreram e vão continuar acontecendo até o final do ano.
ConJur — Quais as possíveis saídas para diminuir a judicialização dos conflitos? Calvet — Uma das lições que a gente tirou da pandemia na área trabalhista foi a de como o advogado é essencial à Justiça, porque muitos dos atos que a gente conseguiu praticar no isolamento, principalmente as audiências telepresenciais, têm mais efetividade com a colaboração dos advogados. Agora, também precisamos repensar a cultura da nossa área, no sentido de que os advogados devem buscar acordos extrajudiciais. Os advogados possuem capacidade técnica para ver os direitos do trabalhador, e o que ele precisa ou não precisa. Temos hoje um recurso, que foi criado na reforma, que permite que seja levado à Justiça apenas um acordo a ser homologado. O juiz analisa os requisitos de validade do pacto e homologa. Precisamos pensar muito nessa possibilidade e na capacidade dos atores da área trabalhista, principalmente dos advogados, de assumirem mais esse papel de buscar soluções extrajudiciais. Isso ajudaria bastante neste momento.
ConJur — Outra questão que está sendo bastante discutida e ganhou força neste momento de calamidade diz respeito aos entregadores de aplicativo. Há uma espécie de vácuo normativo a esse respeito e parece que o Judiciário não sabe bem, por exemplo, como pacificar a questão sobre se há ou não vínculo empregatício entre os trabalhadores e as empresas. Como o senhor vê essa questão? Calvet — Por um lado, não consigo ver vínculo de emprego. Os requisitos clássicos da relação de emprego não estão presentes nessa relação, a começar pela ausência de subordinação, já que a pessoa pode escolher o horário em que trabalha, no quantitativo que preferir. Também não vejo traço de pessoalidade. Por outro lado, a presença desses trabalhadores é uma realidade e uma tendência para o futuro do mercado em todo o mundo. Além disso, há semelhanças com o trabalho tradicional, que é caracterizado por seres humanos gastando suas energias com uma empresa que consegue lucrar a partir desse trabalho. Com isso em vista, vejo nestes trabalhadores uma relação de trabalho, não de emprego. Assim, eles precisam de algum nível de proteção. A CLT não é adequada, mas os trabalhadores não podem estar à míngua de outros tipos de regulamentação. A melhor regulamentação para eles que existe hoje é ser microempreendedor individual, porque pelo menos são garantidos alguns benefícios previdenciários. Ainda assim, creio que isso é pouco. Deve haver proteção social e algum tipo de responsabilidade por parte da empresa que aufere a sua atividade empresarial com esse tipo de mão de obra. Essa questão é do legislativo, mas penso que deveria haver algum tipo de seguro contra acidente de trânsito, seguros para o caso da pessoa ficar incapacitada para dirigir, coisas do tipo. Eu não posso ter um sem número de trabalhadores sem um mínimo de proteção social adequada, porque isso tudo, lá na frente, vai ser um grande problema para a sociedade. Não podemos fechar os olhos para essa tendência de trabalho.
ConJur — Existe um projeto de lei, o PL 3.748, que incorpora à remuneração total o pagamento proporcional de férias e de 13º salário, prevê seguro desemprego e algumas outras obrigações. Ao mesmo tempo, ocorre que, com essa medida, é criada uma espécie de figura nova, que é a do trabalhador que não é autônomo nem celetista. Essa impressão está correta? Calvet — Essa questão na verdade não é tão nova e nem é exclusividade do Brasil. A Itália enfrentou esse problema há muitos anos, regulamentando os chamados trabalhadores parasubordinados, que ficariam nesse meio termo. A Espanha tem uma lei própria que se chama Estatuto do Trabalhador Autônomo Dependente, que também trata desses trabalhadores que ficam no meio do caminho. No Brasil temos exemplos, como as cooperativas do trabalho. Já tem legislação reconhecendo alguns direitos trabalhistas para os trabalhadores cooperativos. Eles não são empregados, mas têm direitos trabalhistas. Assim, o debate sobre isso é antigo. No entanto, está atrasado para o pessoal que atua nos aplicativos. A grande dificuldade é encontrar uma saída que permita que a pessoa tenha um grau de autonomia e de liberdade e, ao mesmo tempo, não seja tributada de forma pesada, o que poderia inviabilizar sua profissão. Acho que os projetos de lei que tratam dessa temática são positivos, no sentido que eles disparam o diálogo, o que é justamente aquilo que precisamos para, enfim, enfrentar essa nova realidade. Existe uma frase célebre que diz: "Quando o Direito ignora a realidade, a realidade se vinga ignorando o Direito". É mais ou menos isso que está acontecendo com esses trabalhadores. Eles são uma realidade e nós precisamos lidar com isso, pensando para frente e não necessariamente os colocando dentro dos mesmos paradigmas do passado. A área trabalhista precisa fazer esse debate e, obviamente, o parlamento tem que dar o tom de como regular a questão.