Ao promover alterações na legislação brasileira sobre concorrência, a
Lei 14.010 age com espírito desburocratizador, dando espaço às empresas para que ajam de maneira mais incisiva para mitigar os efeitos da crise econômica decorrente da epidemia de Covid-19. Isso não significa que ela traga consigo imunidade para infrações que, em tempos normais, seriam investigadas e punidas.
É a opinião de especialistas durante seminário virtual promovida pela
TV ConJur nesta segunda-feira (13/7). O debate é parte da série e encontros chamada "
Saída de Emergência" e teve o tema “A Lei 14.010 (RJET) e seu impacto no Direito Privado (artigos 14, 20 e 21)". O evento foi apresentado e organizado por
Otavio Luiz Rodrigues Jr, professor da USP e integrante do Conselho Nacional do Ministério Público. O artigo 14 é o que institui alterações concorrenciais. Ele retira a eficácia dos incisos XV e XVII do parágrafo 3º do artigo 36, e do inciso IV do artigo 90 da Lei 12.529/2011. Assim, venda de mercadoria abaixo do preço e cessar atividades sem justa causa deixam de ser infrações puníveis. E ainda duas ou mais empresas que celebrem contrato associativo, consórcio ou
joint venture não precisam mais informar a realização de ato de concentração. Conselheira do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade),
Paula Farani de Azevedo Silveira afirmou que o órgão vai respeitar o espírito da Lei 14.010. "E o espirito é esse: nesse momento, eventuais práticas que, em tempos normais, poderiam ser tidas como anticoncorrenciais não serão, porque feitas para mitigar os efeitos da crise", disse. O advogado
Gabriel Nogueira Dias explicou que, dentro do contexto da crise, a ideia da lei é desburocratizar para permitir uma atuação cirúrgica do Cade. Ao mesmo tempo em que tira uma série de operações do radar do órgão, dá a liberdade para que escolha entre o joio e o trigo, podendo analisar o que considerar que não ocorre com a intenção de minimizar os efeitos da crise econômica. "O objetivo desse normativo não foi menos concorrência ou maior liberdade no sentido de menor proteção coletiva. Foi liberdade no sentido de desburocratização em duas vias: uma para a sociedade e outra para a autoridade concorrencial, que pode procurar os atos que realmente lhe interessam, deixando aqueles que na verdade não teriam grande necessidade de avaliação. E sem perder o grau rígido de tutela da coletividade através das normas concorrenciais", destacou. Farani apontou que o Cade tem feito esforço grande de comunicação com as empresas, de modo a responder às dúvidas do que deve ou não ser notificado ao órgão. A intenção primeira, segundo ela, é garantir que o ambiente concorrencial continue existindo durante a epidemia. E que não haja nenhum afrouxamento. "Existe essa sensibilidade no sentido de reconhecer a necessidade de flexibilização e desburocratização e, no entanto, não permitir o que seria uma imunidade. Isso permite que o Cade foque o que é absolutamente necessário: atos de concentração, medidas preventivas, aquilo que vemos no dia-a-dia e é necessária para que a economia continue caminhando e o ambiente concorrência, existindo", afirmou.
LGPD adiada Além das normas concorrenciais, a Lei 14.010 também incorre na vigência de artigos da Lei Geral de Proteção de Dados, que entraria em vigor a princípio em agosto de 2020, mas teve vigência adiada para agosto de 2021 pelo artigo 20 da norma. A prorrogação atinge a parte que institui sanções para seu desrespeito, o que foi considerado um avanço pelo advogado
Alexandre Liquidato. "O expediente de cingir a vigência de uma lei é um que, para muitos, pode agredir a boa técnica legislativa. Todavia, o Brasil não é pra iniciantes. Lei boa é lei aprovada e em vigor. O que pode ser até mesmo o ideal tem que dar lugar aquilo que é possível. Devemos agarrar o possível com unhas e dentes", avaliou o advogado. Isso porque, no contexto da pandemia, as empresas invariavelmente enfrentariam dificuldades de adequação à realidade do que impõe a LGPD, inclusive porque o momento é de impor prioridades. Como explicou o advogado
Ademir Antônio Pereira Jr., a lei é de caráter transversal, atinge a todos de igual maneira, em um país onde a cultura de proteção de dados pode ser considerada incipiente. "Algumas empresas já mais sofisticadas, que trabalham com governância,
complience, etc; muitas estão bastante atrasadas no processo de adequação, muito por apostarem na prorrogação ou na própria pauta de eficácia imediata da lei, por questão de monitoramento — de ter pessoal capaz de fazer a aplicação da lei, mesmo", exemplificou. Para Liquidato, as transformações tecnológicas e a aceleração das relações virtuais motivada pela epidemia tornaram dados pessoais
comodities, considerados insumos da nova vida econômica. Esse cenário modifica o jeito que a economia deve abordar a proteção de dados. "Temos que enxergar o tratamento de dados como algo que corresponda à eficácia diretamente visada de um negócio jurídico. Ou seja, entendo que não apenas o tratamento de dados possa corresponder a um negócio jurídico, como imagino até mesmo com natureza contratual", opinou.