Mesma tempestade, barcos diferentes
Pandemia na capital do país, o Jornal de Brasília mostra o retrato de quatro famílias durante o período de quarentena frente ao coronavírus
A pandemia do novo coronavírus trouxe nova realidade para todos, desde os mais ricos até as pessoas em situação de rua. As rotinas foram alteradas. Mas a nova realidade escancara ainda mais as desigualdades de um país marcado por grandes diferenças sociais: de acordo com Instituto Brasileiro de Estatística (IBGE), 2,7% das famílias brasileiras concentram 19,9% da renda. O Jornal de Brasília procurou famílias que representam diferentes classes sociais vivendo na capital brasileira. Foram ouvidos desde as mais humildes às mais abastadas. As que que fazem parte desta reportagem foram atingidas de diferentes formas pelas medidas de isolamento social. Enquanto alguns aproveitam para repensar suas rotinas, outros perdem o sono pensando na despensa vazia e no que vão comer no dia seguinte. Estar em uma tempestade não significa estar em um mesmo barco. Em uma Brasília com o Índice de Gini – instrumento matemático utilizado para medir a desigualdade social de um determinado país, unidade federativa ou município – na marca de 0,513, segundo último levantamento do IBGE, superior à média nacional, de 0,509, as distantes realidades entre as classes sociais se tornam ainda mais contrastantes. No indicador de Gini, quanto mais próximo de 1, menores as disparidades de desigualdade social de um local específico.Isolamento de luxo
Em um residencial de luxo na Asa Sul, a recepção é feita por Estenio Campelo. 72 anos, empresário e um dos advogados mais reconhecidos da capital. Logo na entrada do apartamento, um dos recursos para evitar o contato físico com a maçaneta e mitigar possíveis riscos de contágio indireto é uma porta com sistema de abertura eletrônico. “Bem-vindo”, recepciona o proprietário, “fique à vontade”. Estenio contou que, durante parte da quarentena e à convite de um amigo de Brasília, passou três semanas na fazenda, que fica na zona rural da Fercal com a esposa e o filho de 6 anos. “Vínhamos aos domingos para ver se estava tudo bem, fazíamos pagamentos para os empregados e voltávamos para a fazenda novamente. Voltamos definitivamente no domingo passado (17)”, disse. Durante a quarentena e diante do risco de contaminação, Estenio foi um dos empresários que precisou fechar temporariamente o negócio. No dia 10 de março, logo após a determinação do governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, de fechar as atividades comerciais não essenciais, os funcionários do escritório de advocacia Campelo Bezerra Advogados Associados tiveram férias coletivas antecipadas. Em 22 de abril, os escritórios foram liberados e o sistema de escala foi adotado. “Intercalamos a parte administrativa com cada funcionário trabalhando dia sim, dia não, para não haver aglomeração. Os advogados, por sua vez, têm suas salas individuais, então recomendamos que ficassem com as janelas abertas ao invés do ar condicionado [para ventilação do espaço]. E fizemos uma desinfecção de todo prédio, desde a garagem até o último andar e em cada sala”, comentou. A rotina de trabalho no escritório, anteriormente de 9h às 18h30, passou a funcionar de 10h às 12h30; o restante das atividades é realizado em home office. São poucas as saídas feitas por Estenio, e o trajeto é apenas da garagem do residencial para o trabalho. Para as compras de casa, o motorista da família é o encarregado do serviço. “Só saio algumas vezes para o caixa do banco também, com as devidas precauções”, acrescentou o advogado. Estenio, de forma humilde, se sente privilegiado. “Graças a Deus tenho a possibilidade de ter uma cobertura. Lá em cima eu brinco com meu filho. Tem piscina, spa, banheira, sauna, um terraço. É como se eu estivesse em um clube”, conta. No mais, ele conta que, em outros momentos, passa o tempo com leituras de revistas, jornais e noticiários. Para cuidar da casa, juntamente com o motorista, outras quatro pessoas cuidam da dinâmica do apartamento: são duas empregadas domésticas que o visitam três vezes por semana; um piscineiro para a limpeza da piscina no andar superior, duas vezes por semana; e um jardineiro a cada 15 dias.Escritório com vista para o jardim
Desacelerar, aproximar-se mais da família e descobrir os benefícios da TV por streaming pode ser o legado do isolamento social imposto pela pandemia do novo coronavírus. Moradora do Lago Norte, a dentista Ilana Guimarães, proprietária de uma clínica de odontopediatria e responsável por uma equipe de 17 profissionais entre dentistas, auxiliares e administração, não sabia o que era ficar em casa, olhando a natureza exuberante de seu jardim ou ver uma série na TV com o marido, tampouco como curtir o sol com o filho Matheo, de 14 anos, e os enteados. Agora, o trabalho continua, só que online. E a vida mudou: além do trabalho, outras prioridades surgiram.“Como estou no grupo de maior risco por ser hipertensa, estou afastada fisicamente da clínica. Atendo os pais dos pacientes por telefone para dar orientações e tirar dúvidas. Também já fiz três lives sobre odontologia e continuo com os cursos que a minha empresa oferece, só que online”, disse a dentista.Até preparar as aulas e cursos tem tido um gosto diferente para Ilana. “Eu não uso o escritório de casa, fico no meu quarto com computador. Trabalho enquanto observo a natureza do jardim.” O escritório é usado pelo marido, Paulo, servidor aposentado que atualmente presta consultoria a empresas. Segundo Ilana, o dia a dia da família segue sem muitas dificuldades. Matheo, aluno em escola bilíngue do DF, tem tido aulas online, porém em um ritmo mais tranquilo do que quando as aulas eram presenciais, relata a mãe. Além do adolescente, costumam estar presentes os outros filhos de Paulo, que também ajudam na divisão das tarefas. “O Otávio, filho do Paulo, é quem costuma fazer as compras da casa. E quando ele vem pra cá, traz”, exemplificou Ilana. Empregada dorme em casa Até para a auxiliar Sílvia, a empregada doméstica da família, foi pensada uma forma de adaptar a rotina do isolamento da família. “Eu me preocupava de ela vir todos os dias, tendo que pegar ônibus e correndo o risco de se contaminar, mas encontramos uma forma. Ela fica 15 dias aqui e, quando vai para casa, aproveita a carona do caseiro. Ela preferiu isso do que tirar férias”, explicou Ilana.
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Mesma tempestade, barcos diferentes
Pandemia na capital do país, o Jornal de Brasília mostra o retrato de quatro famílias durante o período de quarentena frente ao coronavírus
Catarina Lima e Vítor Mendonça redacao@grupojbr.com A pandemia do novo coronavírus trouxe nova realidade para todos, desde os mais ricos até as pessoas em situação de rua. As rotinas foram alteradas. Mas a nova realidade escancara ainda mais as desigualdades de um país marcado por grandes diferenças sociais: de acordo com Instituto Brasileiro de Estatística (IBGE), 2,7% das famílias brasileiras concentram 19,9% da renda.PUBLICIDADE
Isolamento de luxo
Em um residencial de luxo na Asa Sul, a recepção é feita por Estenio Campelo. 72 anos, empresário e um dos advogados mais reconhecidos da capital. Logo na entrada do apartamento, um dos recursos para evitar o contato físico com a maçaneta e mitigar possíveis riscos de contágio indireto é uma porta com sistema de abertura eletrônico. “Bem-vindo”, recepciona o proprietário, “fique à vontade”.CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADE
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Escritório com vista para o jardim
Desacelerar, aproximar-se mais da família e descobrir os benefícios da TV por streaming pode ser o legado do isolamento social imposto pela pandemia do novo coronavírus. Moradora do Lago Norte, a dentista Ilana Guimarães, proprietária de uma clínica de odontopediatria e responsável por uma equipe de 17 profissionais entre dentistas, auxiliares e administração, não sabia o que era ficar em casa, olhando a natureza exuberante de seu jardim ou ver uma série na TV com o marido, tampouco como curtir o sol com o filho Matheo, de 14 anos, e os enteados. Agora, o trabalho continua, só que online. E a vida mudou: além do trabalho, outras prioridades surgiram.“Como estou no grupo de maior risco por ser hipertensa, estou afastada fisicamente da clínica. Atendo os pais dos pacientes por telefone para dar orientações e tirar dúvidas. Também já fiz três lives sobre odontologia e continuo com os cursos que a minha empresa oferece, só que online”, disse a dentista.Até preparar as aulas e cursos tem tido um gosto diferente para Ilana. “Eu não uso o escritório de casa, fico no meu quarto com computador. Trabalho enquanto observo a natureza do jardim.” O escritório é usado pelo marido, Paulo, servidor aposentado que atualmente presta consultoria a empresas. Segundo Ilana, o dia a dia da família segue sem muitas dificuldades. Matheo, aluno em escola bilíngue do DF, tem tido aulas online, porém em um ritmo mais tranquilo do que quando as aulas eram presenciais, relata a mãe. Além do adolescente, costumam estar presentes os outros filhos de Paulo, que também ajudam na divisão das tarefas. “O Otávio, filho do Paulo, é quem costuma fazer as compras da casa. E quando ele vem pra cá, traz”, exemplificou Ilana. Empregada dorme em casa Até para a auxiliar Sílvia, a empregada doméstica da família, foi pensada uma forma de adaptar a rotina do isolamento da família. “Eu me preocupava de ela vir todos os dias, tendo que pegar ônibus e correndo o risco de se contaminar, mas encontramos uma forma. Ela fica 15 dias aqui e, quando vai para casa, aproveita a carona do caseiro. Ela preferiu isso do que tirar férias”, explicou Ilana.
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