Só atentamos depois que os caminhões estão cheios de cadáveres
24/03/2020 24/03/2020 16:36 127 visualizações por Paulo Ferrareze Filho A morte sempre esteve em nossos calcanhares. Mesmo assim sempre vivemos de um jeito a fazer parecer que não. O ser humano é um iludido por natureza. Um iludido sobre a morte. Por isso, vive como se fosse viver para sempre. A incidência de um fenômeno aleatório como esse vírus, que nos tranca em casa, sobretudo, porque toca em nosso medo primordial da morte, é o líquido laboratorial que contrasta o que presta ou não em nossos modos de viver, em nossos sistemas de organização social, no peso que damos às coisas, em nossas significações precípuas e em nossos sentidos já concebidos. Em 2009, quando visitei o Chekpoint Charlie em Berlim, conhecido posto militar dos Aliados entre as duas Alemanhas na 2ª guerra, psicografei naqueles livros de assinatura da entrada o seguinte: “a 3ª guerra mundial será uma mental e psíquica.” Onze anos depois cá estamos. Presos em casa. Isolados de tudo. Negociando com nossos demônios interiores algum acordo para a quarentena perigosa, tediosa e maquinicamente mordaz para nosso psiquismo. Em guerra contra algo menor que uma formiga. Quem diria: nós, que construímos armas atômicas imensas, que fomos à lua com um foguete gigantesco, agora suscetíveis a uma poeira biológica maligna. E, por isso, embebidos no contraste viral que faz com que tudo, absolutamente tudo que fazíamos e pensávamos, deva ser revisado. Afinal, a coisa está escancarada: nossas desumanidades estarão cada vez mais pornograficamente claras nesse gigantesco tubo de ensaio das novas formas de civilidade. O tratamento que a coletividade dispensou até aqui aos mais pobres, aos estrangeiros, aos negros, aos que ainda devem andar em elevadores de serviço, aos tímidos, aos loucos, aos homossexuais, às mulheres, às crianças, aos adolescentes, aos índios, a todos aqueles que tiveram o azar de nascer diferentes de um paradigma autoritariamente inventado, em um mundo de merda como o nosso, ora contrastam fortes em nosso tubo. Os abismos gerados pelo nosso modo de gerenciar a economia, tão cruelmente claros nos discursos medrosos e senis de quem nos timoneia, hoje nos engolem de um modo já previsto por Nietzsche: “Quando você olha muito tempo para um abismo, o abismo começa a olhar para você”. O vírus trouxe em nossa vã consciência o fato de que este abismo da economia passou a olhar no fundo de nós, no grão dos nossos olhos, com uma seriedade terrificante no meio de um riso irônico de canto de boca. Nosso jeito econômico de ser, agora contrasta brilhoso em nosso tubo de ensaio das novas formas de civilidade. No Brasil, o fato de Mourão ser uma alternativa para fazer o grotesco se tornar apenas ruim, é a prova do quão primitivo, infantil e atrasado ainda são nossos modos brasileiros de civilidade. O Brasil fez de Bolsonaro o espelho político dos nacos (maiores e menores) de ingenuidade, de irresponsabilidade e de perversão de todos que tiveram a coragem de digitar 17 em 2018. Essa nossa brincadeira infantil de fazer política, baseada no chute, suscetível ao mais baixo discurso e vagabunda demais para estudar minimamente as pessoas em quem votamos, ora reluz vívida em nosso tubo de ensaio. Também o autoritarismo das religiões tem gerado efeitos escabrosos. Primeiro porque parte dela foi e é condescendente com a perversidade institucionalizada com Bolsonaro. Segundo porque já faz mais de cem anos que Freud, com uma pesquisa de difícil refutação, demonstrou que as religiões são ilusões, elixires contra nossa condição de desamparo psíquico ao perceber que nossos pais protetores são inevitavelmente mortais. A religião deveria, desde sempre, ficar completamente fora da agenda de um Estado que pretenda alguma eficácia civilizadora. Essa religião intrusa do espaço público, perniciosa, também brilha em nosso tubo de ensaio. A urgência da solidariedade é o que resta a quem de nós não morrer. Nós somos péssimos e este mundo é uma merda porque só confrontamos a si-mesmos quando os caminhões estão cheios de cadáveres. Foi assim em todo o século XX. Agora essa urgência novamente brilha e fede nesse novo tubo de ensaio das novas formas (?) de civilidade. PAULO FERRAREZE FILHO é professor de psicologia jurídica, psicanalista em formação e pós-doutorando em psicologia social (USP)