Sabe-se que, no Brasil, a investigação criminal é tarefa exclusiva da Polícia Judiciária, porquanto a vontade do legislador constituinte foi expressa nesse sentido.[1] Segundo a Lei Maior, a Polícia Judiciária (Polícia Federal e Polícia Civil) é o órgão vocacionado para realizar apuração de infrações penais comuns (artigo 144, §§1º e 4º).[2]
O modelo de persecução penal brasileiro, melhor do que a maioria dos países (ao menos na teoria, pois a prática é afetada pela falta de investimentos), consagrou maior divisão de poderes, não permitindo que a acusação e a defesa acumulem a função investigativa. Trata-se de salutar limitação, verdadeira garantia do cidadão no sentido de que só pode ser investigado por órgão imparcial (Polícia Judiciária), e não por parte interessada no futuro resultado do eventual processo.
Não é novidade que a investigação criminal não consta no rol de atribuições do artigo 129 da Constituição, porquanto o constituinte originário expressamente rejeitou várias emendas que dariam tal poder ao Ministério Público. Contudo, o STF[3] admitiu a investigação pelo Parquet por meio do chamado procedimento investigatório criminal.[4]
O Tribunal Constitucional, no entanto, não deu uma carta em branco para o Ministério Público. Muito pelo contrário: colocou limites,[5] dentre os quais excepcionalidade, subsidiariedade, observância de regras que norteiam o inquérito policial, e condução da investigação sob sua direção do início até o fim. Isso impede que o Ministério Público resolva abrir mão do PIC e transformá-lo em um IP ao seu bel-prazer.
Não há como negar que a apuração criminal deve ser feita em determinado prazo, não podendo se eternizar sob pena de violar a duração razoável da investigação.[6] Encerrada a coleta de vestígios, com ou sem comprovação da existência do crime e de sua autoria, o caderno apuratório deve ser remetido ao Poder Judiciário (artigo 10, §1º do CPP e artigo 19, §1º da Resolução 181/17 do CNMP).
O encerramento da investigação de crime se dá com a remessa ao magistrado competente para manifestação, seja para a continuidade da persecução criminal com o recebimento da peça acusatória, seja para o encerramento da perseguição estatal por meio do arquivamento do caderno apuratório. Em outras palavras: ainda que a apuração penal tenha fracassado, persiste o dever de o órgão investigador presidir o procedimento até sua conclusão e submetê-lo à fiscalização judicial.
O membro do Ministério Público não tem a opção de se livrar do PIC por meio do seu envio à Polícia Judiciária, requisitando a instauração de IP. Assim fazendo, estaria obstando o regular controle exercido pelo Poder Judiciário, transferindo indevidamente a presidência da investigação para outro órgão, e retrocedendo equivocadamente o procedimento investigatório ao estágio embrionário de notícia crime.
Ora, o controle judicial sobre a investigação criminal não é opcional. A presidência da apuração criminal deve incidir sobre todo o procedimento, de modo que a instituição que iniciou a investigação deve conduzi-la até o fim. E a noticia criminis é que se converte em procedimento apuratório, e não o contrário.
Se o órgão acusador entende que sua investigação naufragou, que peça o arquivamento em vez de pretender usar a Polícia Judiciária como tábua de salvação. Da jurisprudência que autorizou a investigação pelo Parquet não se extrai a permissão para que o Ministério Público contorne o mecanismo de arquivamento por meio de indevida conversão do PIC em IP, requentando um procedimento malogrado e transferindo a responsabilidade do seu insucesso para a Polícia Judiciária.
Fácil perceber que o Ministério Público não pode decidir arbitrariamente pela extinção anômala da sua investigação, por meio da odiosa tentativa de transmudar a apuração ministerial em policial.
A doutrina não diverge:
Há situações em que o membro do Ministério Público dá início à investigação solitária, sem inquérito que a acompanhe. Passados meses, por vezes anos, sem ter chegado a um termo interessante, vale dizer, não havendo descoberto crime algum, não pode o promotor/procurador da República enviar o seu procedimento investigatório criminal frustrado para a polícia judiciária, com requisição de instauração de inquérito.
Em primeiro lugar, a polícia judiciária não é órgão subalterno do Ministério Público, que possui, constitucionalmente, o seu controle externo, vale dizer, a fiscalização dos atos policiais. Em segundo lugar, a polícia judiciária não foi comunicada da investigação, que se iniciou muito tempo antes, para que pudesse efetivamente colaborar; logo, não é depósito de PICs malsucedidos. Seria desconsiderar a figura do Delegado de Polícia. Em terceiro lugar, como já se disse, assumindo o ônus investigatório, o Ministério Público deve concluí-lo e, não havendo provas, pleitear o seu arquivamento ao Judiciário. Lembremos que, arquivado o inquérito ou o PIC, somente poderá ser desarquivado com provas substancialmente novas. Então, remeter o caso para que a polícia continue a investigação frustrada é contornar o direito consolidado de quem é investigado de fazer cessar tal intromissão em sua vida, a menos que surjam novas provas. Em quarto lugar, basta fazer o raciocínio inverso, vez que não há hierarquia entre as instituições, ou seja, nenhum tipo de subordinação. Imagine-se o delegado findar o inquérito, sem solução, e encaminhá-lo ao Ministério Público sugerindo que prossiga a investigação a partir dali. Seria considerado um rebelde. Ora, utilizar o poder requisitório que lhe foi conferido constitucionalmente para tergiversar, fazendo uma investigação frustrada prosseguir, constitui evidente desvio funcional, gerando constrangimento ilegal. (...)
Se o Ministério Público tanto quis investigar sozinho (insisto sempre: de modo solitário; sem qualquer outra instituição imiscuindo-se), que o faça bem feito agora. Mas não tem sentido falhar e “determinar” que outra instituição, com a qual não possui vínculo de subordinação, prossiga de onde parou.[7]
Essa atípica conduta se mostra ainda mais teratológica por ser escorada no exercício abusivo do poder requisitório. O fato de o MP possuir o poder de requisitar a instauração de inquérito policial não significa que possa usar esse expediente como subterfúgio para praticar ilegalidade.
Afinal, por requisição deve-se entender a:
Exigência para a realização de algo, fundamentada em lei. Assim, não se deve confundir requisição com ordem, pois nem o representante do Ministério Público, nem tampouco o juiz, são superiores hierárquicos do delegado, motivo pelo qual não lhe podem dar ordens. Requisitar a instauração do inquérito significa um requerimento lastreado em lei, fazendo com que a autoridade policial cumpra a norma e não a vontade particular do promotor ou do magistrado.[8]
Logo, a requisição só deve ser cumprida se tiver base legal, pouco importando a vontade pessoal do emissor, sob pena de permitir que o capricho pessoal revogue o ordenamento jurídico.
Nessa trilha, se o membro do MP remeter para a delegacia o procedimento investigatório criminal requisitando a instauração de inquérito policial, o delegado de polícia deve fundamentadamente deixar de cumprir a requisição. Como resultado de sua análise técnico-jurídica (artigo 2º da Lei 12.830/13), precisa determinar o retorno dos autos ao Ministério Público.
Situações como essa demonstram a importância da independência funcional da autoridade policial:
A autoridade policial, munida do poder discricionário na condução da investigação, só deve satisfações à lei. (...) A condição de autoridade que reveste o cargo de delegado, faz com que aja com completa independência na condução da investigação policial, desautorizando qualquer determinação que seja contrária à sua convicção.[9]
O livre convencimento técnico-jurídico do delegado de polícia deriva do fato de o inquérito policial ser um procedimento discricionário (CPP, artigo 14). A isenção e imparcialidade, por sua vez, são consectários lógicos dos princípios da impessoalidade e moralidade, previstos expressamente no artigo 37, caput da Constituição Federal.[10]
A autoridade policial deve conta de seus atos tão somente à Constituição, às leis e à sua consciência, interditando-se a qualquer outro agente público a expedição de ordens a respeito de como agir nos casos em que oficia, desde que, por óbvio, suas decisões estejam devidamente fundamentadas.[11]
Portanto, não é difícil notar a abusividade da tentativa de desovar a investigação ministerial na delegacia e transformá-la, como num passe de mágica, em investigação policial, anomalia frankensteiniana capaz de ferir os mais comezinhos princípios constitucionais.
[1] HOFFMANN, Henrique. Investigação exclusivamente criminal é atribuição da polícia judiciária. Revista Consultor Jurídico, nov. 2018. Disponível em: