*William Garcez
A Teoria Geral do Crime é o alicerce do Direito Penal. Toda a evolução sofrida pela ciência criminal ao longo do tempo, desde os estudos elaborados por Franz von Liszt e Ernest von Beling, no século XIX, teve, e continuará tendo, reflexos marcantes nos substratos do conceito analítico do delito. Esse fator, como não poderia ser diferente, inspira mudanças em todo o sistema de persecução penal, sobretudo no âmbito pré-processual, onde os contornos da figura delitiva começam a ganhar forma e a reprovabilidade da conduta praticada começa a ser delimitada. Daí, exsurgere, imperiosa necessidade de o delegado de polícia aplicar toda a essência da Teoria Geral do Crime aos casos investigados, evitando o indiciamento criminal de pessoa que não tenha praticado um fato típico, ilícito e culpável, o que seria incoerente e geraria palpável injustiça, além de afrontar os pilares do Estado Democrático de Direito. Já escrevemos em outra oportunidade que o direito criminal, sem dúvidas, é um dos instrumentos de controle social formal, caracterizado, em virtude de sua principal resposta visar o cerceamento da liberdade por meio da pena ou cautelarmente, como o mais severo deles. É inegável, portanto, a importância das matrizes constitucionais principiológias tanto para a atuação do legislador, enquanto criador da lei penal, quanto do juiz de direito, como aplicador final da lei e, também, do delegado de polícia, como aplicador do Direito na fase inicial da persecução penal[1]. O conceito de crime não é único. A doutrina é vasta na sua definição. Em linhas gerais, pode-se dizer que, ontologicamente, o crime é uma ofensa à sociedade, pois o seu autor viola o pacto social de bem viver, composto pelas regras estabelecidas para a vida harmônica em sociedade. Nesse jaez, Nucci lembra que "é a sociedade a criadora inaugural do crime, qualificativo que reserva as condutas ilícitas mais gravosas e merecedoras de maior rigor punitivo. Após, cabe ao legislador transformar esse intento em figura típica, criando a lei que permitira a aplicação do anseio social aos casos concretos".[2] Os principais aspectos trabalhados para se elaborar a conceituação do crime dentro da sua teoria geral são o formal, o material e o analítico. Por essa razão, quando se fala em “conceito de crime”, deve-se perquirir qual desses aspectos está abrangido pela pretensão do interlocutor. Sob o aspecto formal, o crime é toda ação ou omissão proibida pela lei, sob a ameaça de pena, ou seja, tudo aquilo que está inserido em uma lei penal incriminadora porque assim quis o legislador. O aspecto material ilustra que crime é o comportamento humano que fere ou expõe a perigo um bem jurídico relevante e tutelado pela lei. Nas palavras de Marques, seria “a violação de um bem jurídico penalmente protegido”.[3] Conforme se verifica, esses aspectos do conceito de crime, dada a sua simplicidade, são facilmente compreendidos. No entanto, o mesmo não se pode dizer sobre o aspecto analítico. Quando se estuda seu conceito analítico, o crime pode receber até quatro substratos, conforme a teoria a ser adotada. Para os defensores da teoria bipartida[4] o crime é o fato típico e ilícito, neste caso, a culpabilidade é apenas pressuposto para a aplicação da pena. Os arautos da teoria tripartida[5] sustentam que o crime é o fato típico, ilícito e culpável. Por fim, alude-se que os defensores da teoria quadripartida[6] afirmam ser crime o fato típico, ilícito, culpável e punível.[7] O Código Penal Brasileiro parece inclinar-se pela teoria bipartida, haja vista que, ao referir-se às excludentes de ilicitude, utiliza a expressão “não há crime” e ao referir-se as excludentes de culpabilidade refere: “é isento de pena”. A doutrina penal contemporânea prefere a teoria tripartida, incluindo, portanto, a culpabilidade no conceito analítico de crime. Conforme referimos inicialmente, com o passar do tempo, a Teoria Geral do Crime passou por grande evolução conceitual de seus institutos e, consequentemente, a sua aplicabilidade prática sofreu severas alterações, a fim de se adequar às novas ideias. Nos primórdios da sua elaboração, a Escola Clássica cuidava apenas da tipicidade formal, a simples subsunção do fato à norma penal incriminadora. Sob essa ótica, para que um fato seja considerado típico, basta que o comportamento do agente se amolde aos elementos descritivos do tipo penal. Assim, o indivíduo que subtrair um pacote de bolachas do supermercado cometerá o crime de furto, uma vez que o artigo 155 do Código Penal descreve como típica a conduta de subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel. Ocorre que, com a evolução dos estudos, foi-se incrementando a ideia de que a tipicidade deveria ser encarada de forma mais abrangente, de modo que, além da tipicidade formal, para que o fato praticado seja considerado um fato típico, seria necessário, ainda, a incidência da tipicidade material, representada pela "efetiva lesão ao bem jurídico tutelado pela norma penal". Sob essa ótica, no exemplo descrito acima, a conduta do agente não seria considerada típica para o crime de furto, tendo em vista que o bem jurídico tutelado pela norma do art. 155 do Código Penal, o patrimônio, não sofreu efetiva lesão, dada a insignificância da conduta e seu resultado. A tipicidade material[8], assim, traz para dentro do tipo penal dois princípios que devem ser observados pelos aplicadores do direito quando da análise das condutas criminosas. O princípio da insignificância, que orienta a não atuação do Direito Penal quando a conduta perpetrada for ínfima, ou seja, incapaz de lesar o bem protegido[9]. E o princípio da adequação social, segundo o qual o Direito Penal não será utilizado para punir condutas que a sociedade já tem como normal. Esses dois princípios acarretam o afastamento do resultado, segundo elemento do fato típico, e, por conseguinte, a tipicidade da conduta. O afastamento do resultado, seja pela sua insignificância ou pela adequação social, significa, em outras palavras, que não houve efetiva lesão ao objeto que a lei penal visava proteger. O consectário lógico da análise da tipicidade material, portanto, perfaz-se com fundamento no princípio da ofensividade, que orienta a não incidência do Direito Penal quando estivermos diante de fato inofensivo, incapaz de agredir a ordem social[10]. Nesse sentido, Bitencourt[11] esclarece que: O princípio da ofensividade (ou lesividade) exerce função dupla no direito penal em um Estado Democrático de direito: a) função político-criminal – esta função tem caráter preventivo informativo, na medida em que se manifesta nos momentos que antecedem a elaboração dos diplomas legislativo-criminais; b) função interpretativa ou dogmática – esta finalidade manifesta-se a posteriori, isto é, quando surge a oportunidade de operacionalizar-se o direito penal, no momento em que se deve aplicar, in concreto, a norma penal elaborada. O princípio da ofensividade, por sua vez, está diretamente relacionado ao princípio da alteridade, segundo o qual o Direito Penal não punirá condutas meramente subjetivas[12] ou que não ofendam bens jurídicos de terceiros[13]. O crime não é só conduta. É também, e principalmente, resultado, no sentido jurídico material, ou seja, efetiva lesão a um bem jurídico protegido pela lei penal e que mereça essa proteção. Com efeito, não tem sentido punir uma conduta quando ela não foi suficiente para ultrapassar a esfera de proteção que a lei penal deve tolerar, como consectário da intervenção mínima, conforme veremos. Esses princípios, como não poderia ser diferente, condicionam todos os aplicadores do direito a verificar se, além da tipicidade formal do delito, fabricada pelo legislador, o comportamento suspeito violou concretamente o bem jurídico tutelado. A tipicidade penal moderna não se esgota na relação de adequação da conduta ao tipo penal, mas exige, em cada caso, efetiva ofensa ao objeto protegido pela lei. Considerando a interpretação a partir do caso concreto, ou mesmo de um caso abstrato, é possível aferir, pela observação da realidade fática ou dos elementos disponíveis na hipótese, se a ofensa ao bem jurídico foi efetivamente significante ou, do contrário, mostrou-se sem importância. Logicamente, em alguns tipos penais, como o homicídio, tendo em vista o bem jurídico tutelado, é desnecessária e desarrazoada a investigação acerca da insignificância do fato.[14] Os princípios penais antes referidos, v.g., insignificância, adequação social, ofensividade e alteridade, são decorrência lógica do princípio da intervenção mínima, o qual informa que o Estado Democrático de Direito somente deve utilizar o Direito Penal quando houver extrema necessidade, pela violação de bem jurídico relevante (caráter fragmentário) e como seu último recurso, para resolver conflitos não solucionáveis por outras áreas do Direito (caráter subsidiário). A intervenção mínima do Direito Penal, nessa perspectiva, é decorrente do princípio da dignidade da pessoa, expresso no art. 1º, inciso III, do texto constitucional, de modo que a sociedade não deve receber a intervenção do braço repressor do direito quando houver outras alternativas de resolução de conflitos. Como forma de demonstrar a imprescindível relação de transcendência que existe entre os princípios constitucionais, ainda que implícitos, e sua evidente sobreposição sobre as regras positivas, enquanto normas abstratas, colaciona-se a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal[15]: PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA - IDENTIFICAÇÃO DOS VETORES CUJA PRESENÇA LEGITIMA O RECONHECIMENTO DESSE POSTULADO DE POLÍTICA CRIMINAL - CONSEQÜENTE DESCARACTERIZAÇÃO DA TIPICIDADE PENAL EM SEU ASPECTO MATERIAL - DELITO DE FURTO - CONDENAÇÃO IMPOSTA A JOVEM DESEMPREGADO, COM APENAS 19 ANOS DE IDADE - RES FURTIVA NO VALOR DE R$ 25,00 (EQUIVALENTE A 9,61% DO SALÁRIO MÍNIMO ATUALMENTE EM VIGOR) - DOUTRINA - CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA JURISPRUDÊNCIA DO STF - PEDIDO DEFERIDO - O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA QUALIFICA-SE COMO FATOR DE DESCARACTERIZAÇÃO MATERIAL DA TIPICIDADE PENAL - O princípio da insignificância - que deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal - tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material. Doutrina. Tal postulado - que considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais como a) a mínima ofensividade da conduta do agente, b) a nenhuma periculosidade social da ação, c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada - apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público. O POSTULADO DA INSIGNIFICÂNCIA E A FUNÇÃO DO DIREITO PENAL: DE MINIMIS, NON CURAT PRAETOR - O sistema jurídico há de considerar a relevantíssima circunstância de que a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificam quando estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da sociedade e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais, notadamente naqueles casos em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano, efetivo ou potencial, impregnado de significativa lesividade. O direito penal não se deve ocupar de condutas que produzam resultado, cujo desvalor - por não importar lesão significativa a bens jurídicos relevantes - não represente, por isso mesmo, prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social. Assim, tendo em vista a irradiação do princípio da intervenção mínima no ordenamento jurídico, as decisões das autoridades públicas devem, necessariamente, verificar, caso a caso, os limites da dignidade constitucional do bem jurídico atacado, constatando se houve, de fato, intolerável forma de ofensa a ponto de exigir uma resposta do Direito Penal. Nessa linha, para o delegado de polícia, primeira autoridade pública a ter contato com os fatos sociais
[16], em um sistema garantista sinalizado pelo nosso modelo de Estado, o princípio da intervenção mínima irradia eminente comando de interpretação que deve ser observado no momento de esboçar o seu convencimento técnico-jurídico
[17] sobre determinado fato. Com esse pensamento, Salah Khaled e Alexandre Morais destacam
[18]:
Não só os delegados podem como devem analisar os casos de acordo com o princípio da insignificância. Merecem aplauso e incentivo os delegados que agem dessa forma, pois estão cientes do papel que lhes cabe na investigação preliminar, atuando como filtros de contenção da irracionalidade potencial do sistema penal. (...) Não interessa reafirmar qualquer lugar de autoridade: interessa é obstaculizar a irracionalidade e para isso, os delegados devem ser a primeira barreira.
Diante dessas constatações, afirmamos que toda a Teoria Geral do Crime deve ser aplicada segundo a ação contagiante dos princípios constitucionais reportados, não havendo possibilidade de dissociação de qualquer instituto jurídico-penal da irradiação das normas constitucionais, seja na interpretação das normas incriminadoras, seja na interpretação das excludentes de criminalidade. Inclusive, refira-se, nos exatos termos do artigo 144, §4°, da Constituição Federal, bem como do artigo 4º do Código de
Processo Penal, ao delegado de polícia compete a apuração das
infrações penais e da sua autoria. Nesse sentido, salienta De Santis
[19]:
Caso o delegado entenda, juridicamente, analisando o fato sob o prisma de quaisquer teorias da tipicidade que adote (clássica, finalista, conglobante, imputação objetiva, constitucionalista do delito, etc.), que o autor não praticou crime, então a única solução será decidir pelo seu não indiciamento, posto que não lhe compete indiciar "autor de fato ATÍPICO", nem "autor de conduta típica e LÍCITA", mas sim "autor de infração penal", em outras palavras, autor de crime.
O raciocínio não poderia ser diferente, pois, além de não existir nenhum dispositivo legal limitando a análise da infração penal em sua plenitude pelo delegado de polícia, há amplo aporte legal e principiológico autorizando e, mais do que isso, impondo essa análise com circunspecção, corolário lógico do Estado Democrático de Direito. O delegado de polícia, como garantidor de direitos
[20], tem o dever jurídico e social de lançar mão de todos os institutos que possam convergir para a exclusão do crime, da mesma forma que utiliza os institutos que sugerem a sua caracterização. Nesse jaez, após realizar juízo de valor sobre o fato típico, que é apenas o primeiro substrato do conceito analítico de crime, verificando a sua tipicidade formal e material, o delegado de polícia deve avaliar a ilicitude da conduta e a culpabilidade do agente, institutos que também se inserem na Teoria Geral do Crime. O delegado de polícia deve desempenhar suas atribuições de forma completa, realizando a verificação exauriente do fato praticado, apurando a autoria de
crime, não de metade do seu conceito analítico. *William Garcez Delegado de Polícia (RS). Pós-graduado com Especialização em Direito Penal e Direito Processual Penal. Professor de Direito Penal da Fundação Educacional Machado de Assis - FEMA.